terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Há muitas maneiras de gostar



por Marta Caires(*)

História de Amor ao Gato



Eu tinha seis anos e a gata era preta e branca, veio pequenina para casa e a minha mãe disse que era minha. E ela nunca teve outro nome além de gata, que é mesmo assim quando se trata de gatos. Sei que lhe atei uma fita vermelha ao pescoço, diziam que protegia das doenças. E não a larguei mais. Nem eu, nem o Portela, o nosso cão, um rafeiro amarelo torrado que o meu pai trouxe de uma obra, e com quem dividia a atenção.


E na história desta amizade mandava ela, altiva e ágil, que tanto nos enfiava as unhas como depois, naquele jeito sedutor, se aninhava aos pés e partilhava a casota de madeira do Portela, que, como eu, não percebia de gatos e perdia sempre naquelas lutas de toca e foge, arranha e morde. O resultado era sempre o mesmo. A gata em cima do poste, o cão em baixo a ladrar a injustiça. Até o meu pai, que não gostava de gatos, achava graça.


A gata tinha estilo, não se podia negar, mesmo quando dormia ao sol em cima do muro. À noite esperava por nós no segundo degrau da entrada com ar de quem tinha estado de guarda. E era minha, tinha vindo pequenina, uma bolinha de pelo que se roçava nas minhas pernas e me ensinava tudo sobre gostar, gostar assim sem condições. Eu gostei assim da minha gata preta e branca, que nunca teve outro nome, mas a quem dei o melhor do meu coração, pelo menos o melhor dos meus seis anos.

E, no dia em que morreu, ensinou-me o resto sobre isso de gostar, o lado que dói e faz sofrer. Eu chorei ainda sem saber que chorava a minha primeira perda, o irreversível disto que se chama viver. A minha mãe prometeu que me dava outro gato, explicou-me umas quantas verdades sobre a existência e disse-me que os animais não iam para o céu. Acho que vêm daí as minhas primeiras desavenças com a religião, não era justo, mas isso também fez parte de tudo o que me ensinou. Gostar não tem explicação, às vezes faz sofrer e quase nunca é justo.

O gato prometido veio mesmo, depois chegaram outros cães, uns ficaram anos, outros morreram cedo, mas eu recebi todos com o mesmo entusiasmo, acarinhei e gostei dos rafeiros que o meu pai trouxe para casa. Às vezes quase não dormia para ir abraçar o cão, que latia assustado dentro de um caixote de papel. E, quando ia para cima do terraço ver o mar, deixava-me encantar pelos gatos que emergiam todas as tardes ao cair do sol.

Eu gosto de dias de sol e de gatos e gosto desde que me lembro de ser gente. E comecei a ser gente, pelo menos gente capaz de gostar e chorar, aos seis anos, quando a gata preta e branca chegou a casa e a minha mãe disse que era minha. Enquanto se roçava nas minhas pernas e esperava por nós no segundo degrau da entrada, ensinava-me tudo sobre isso que nos torna humanos: a estranha capacidade de gostar. De gatos, de dias de sol, do mundo e dos outros.


(*) Marta Caires é jornalista. Nasceu no Funchal, mas estudou comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. De regresso a casa, iniciou a vida profissional no Jornal da Madeira. Viveu em Joanesburgo e tem um livro de crônicas publicado pela Nova Delphi.

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